A chegada dos dórios no século XII a.C, provocou a desestruturação dos povoados e espaços urbanos da Grécia Antiga, com o enfraquecimento do comércio, o fim do uso da escrita e a fuga da população para regiões distantes.
A sociedade da Grécia Antiga passou a apresentar, então, fortes características rurais, caracterizando-se o início do período Homérico, que se estendeu até o século VIII a.C.
A base da organização da sociedade eram as unidades familiares, denominadas genos, cada qual liderada por um patriarca, que desempenhava funções de sacerdote, juiz e chefe militar e cujo poder era transmitido hereditariamente do pai para o filho mais velho.
Os membros de cada genos cultuavam um ancestral comum, em geral considerado descendente dos deuses ou heróis.
A terra, os equipamentos e todos os bens produzidos pertenciam à comunidade.
A subsistência era garantida por uma produção que envolvia a maior parte dos integrantes dos genos, sob a liderança do patriarca.
O período Homérico recebe este nome devido à grande importância cultural que teve o poeta Homero, ao descrever os acontecimentos da época em suas duas grandes obras: a Ilíada e a Odisséia.
O nome "Ilíada" veio da palavra Ilion, que em grego significa Tróia,temos, assim, a história da Guerra de Tróia.
Já o nome "Odisséia" vem da palavra Odisseu que em grego significa Ulisses.
Essa obra conta as aventuras de Ulisses, ao voltar à sua terra natal após a eclosão da Guerra de Tróia. É justamente nesse período que começa a divisão dos grupos familiares na Grécia Antiga.
A ORIGEM DIVINA DE ROMA
Segundo a lenda, a guerra teria se originado a partir de uma disputa entre as deusas Hera, Atena e Afrodite, após Éris, a deusa da discórdia, dar a elas o pomo de ouro, também conhecido como "Pomo da Discórdia", marcado para "a mais bela". Zeus mandou as deusas para Páris, que julgou Afrodite como a mais bela. Em troca, Afrodite fez Helena, a mais bonita de todas as mulheres e esposa do rei grego Menela, se apaixonar por Páris, que então a levou para Troia. Agamenon, rei de Micenas e irmão de Menela, reuniu os Aqueus (gregos) e liderou uma expedição contra Troia e cercou a cidade por dez anos, como uma represália pelo insulto de Páris. Após a morte de muitos heróis, incluindo Aquiles e Ájax (entre os gregos) e Heitor e Páris (entre os troianos), a cidade caiu após a introdução do "Cavalo de Troia". Os Aqueus massacraram os troianos (exceto as mulheres e crianças, tomados como escravos) e dessacraram seus templos, invocando assim a fúria dos deuses. Poucos dos aqueus conseguiram retornar para casa e muitos tiveram que achar novos lares, fundando novas colônias. Os Romanos afirmavam traçar suas origens a Aneias, um troiano filho de Afrodite, que teria levado os sobreviventes de Troia até a região que hoje é conhecida como Italia.
O famoso historiador grego Heródoto passou a considerar Homero como um dos principais formuladores de toda a mitologia grega.
Homero teria sido um poeta grego a quem é atribuída a autoria de duas grandes obras clássicas da Antiguidade: os poemas épicos A Ilíada e A Odisséia. O problema é que até hoje ainda não foi encontrada nenhuma prova concreta de que ele realmente teria existido. “Dados exatos sobre quem era Homero, onde vivia, em que data compôs os dois poemas são questões em aberto. Talvez tenham sido dois os autores e as obras até podem não ter sido compostas na Grécia”, diz a arqueóloga Elaine Veloso Hirata, da USP. As primeiras referências indiretas ao poeta e citações de seus épicos datam de meados do século 7 a.C., por isso, especula-se que, se ele existiu realmente, deve ter vivido por volta dos séculos 8 ou 9 a.C. Essa hipótese é sustentada pela análise do estilo e do conteúdo das obras homéricas.
Em A Odisséia, por exemplo, há menções a comerciantes fenícios e outros detalhes que levam historiadores a sugerir que sua composição tenha ocorrido por volta do século 9 a.C. Por outro lado, passagens de A Ilíada se referem a táticas militares surgidas só em meados do século 8 a.C. Ou seja, o intervalo entre um épico e outro é grande, mas, teoricamente, ainda seria possível que tivessem sido criados por um único autor. Uma coisa, porém, é certa: a disseminação das obras atribuídas a Homero por boa parte do mundo antigo foi conseqüência do crescimento do comércio de livros no século 5 a.C. e da proliferação de bibliotecas por várias regiões a partir do século seguinte.
Foi nessa época que o famoso historiador grego Heródoto passou a considerar Homero como um dos principais formuladores de toda a mitologia grega. Ele se baseava na existência de mais de 30 poemas em homenagem aos deuses, os Hinos Homéricos, também supostamente compostos pelo poeta, mas cuja autoria exata nunca foi possível determinar. Produzidas ou não por Homero, o fato é que esse conjunto de obras realmente ajudou a definir princípios éticos e padrões de comportamento que nortearam a conduta da sociedade grega por muitos séculos. Segundo o poeta Homero, a guerra foi causada pelo rapto da rainha Helena (esposa do lendário rei Menela) por Páris, (filho do rei Príamo). Isso ocorreu quando o príncipe troiano foi a Esparta, em missão diplomática, e acabou apaixonando-se por Helena. Páris havia recebido de Afrodite a recompensa de ter a mulher mais bonita do mundo, que era Helena. O rapto deixou Menela enfurecido, fazendo com que este organizasse poderoso exército junto a seu irmão Agamento. O Rei de Micenas, Agame não, aceitou o pedido de seu irmão para comandar o ataque aos troianos. Através do mar Egeu, mais de mil navios foram enviados para Troia. Os poemas Homéricos deixam qualquer Hero-dito confusos quanto o papel dos deuses diante a condição da sikrisis (um confronto de que cada um usa aquilo que tem a seu favor) ... o confronto entre Aquiles e Heitor é melhor discernível no conto do confronto entre Ulisses e Aquiles... O diálogo platônico nos apresenta a mêtis (astúcia) em oposição ao Ranea-Nubos (valentão-cômico) em oposição ao que os historiadores fazem de um Xenofontes a Túciades. Pois há mais sentidos entre o texto e suas possíveis leituras do que sonha a nem sempre vã mas certamente aproximativa arte de que dispomos: o comentário textual.
Comecemos então por uma tradução prosaica (que não visa em português nenhuma correspondência rítmica com o hexâmetro dactílico) do núcleo deste célebre diálogo entre Ulisses e a psukhé de Aquiles no Hades:
“ ‘ Ó Aquiles, filho de Peleu, o mais forte dos Aqueus,
vim por necessidade de Tirésias, para que algum conselho
ele me dê sobre como eu possa chegar à rochosa Ítaca.
Pois ainda não cheguei perto da Acaia, nem sobre minha
terra pus os pés, e sempre suporto males; mas do que tu, Aquiles,
nenhum homem antes (foi) mais bem-aventurado nem (será) a seguir.
Pois antes, estando vivo, te honrávamos como aos deuses,
nós os Argivos, por sua vez agora tens amplo poder sobre os mortos,
estando aqui; por isto não te aflijas por estar morto, Aquiles.’
Assim eu disse, e ele, de imediato retrucando, disse para mim:
‘ Não me consoles da morte, ilustre Ulisses !
Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro,
a um homem sem-lote, que não tem muitos recursos,
do que reinar entre todos os mortos já perecidos.’ ”
( Odisséia XI, 478-491 )
Não é necessário dizer que se Aquiles é mais forte que Heitor, não é sensato nem prudente para escapar da profecia, inverteriam suas posições em relação à escolha do kléos, “glória”, ou do nóstos, “retorno”, o que resultaria em um jogo irônico de inversões dos próprios elementos que tipificam — opondo-as — as duas personagens: Aquiles, o herói do kléos e da Ilíada, preferindo a vida ou o nóstos de Ulisses ao seu estado de morto no Hades, e Ulisses, o herói do nóstos e da Odisséia, preferindo a morte e o kléos de Aquiles ao sofrimento inumerável de um retorno que parece não ter fim. O primeiro pressuposto desta hipótese é a idéia de que os dois termos, em princípio antagônicos, kléos e nóstos condensariam tematicamente não só as duas personagens — também antagônicas — de Aquiles e de Ulisses, mas ainda os dois fios das estórias contadas pela Ilíada (a glória de Aquiles) e pela Odisséia (o retorno de Ulisses). A famosa passagem do canto IX da Ilíada (410-416) onde Aquiles diz que sua mãe previu duas formas possíveis e excludentes de morte (dikhthadías kêras) para ele: ou morrer lutando em Tróia por flechas de Priamo ao calcanhar... e perder o “retorno” (nóstos) mas ganhar a “glória imortal” (kléos áphthiton), ou morrer na terra pátria, tendo retornado à casa (oíkad’híkomi) e vivido ainda muito tempo, mas perder a “nobre glória” que envolvem a sikrisis entre os raciocínios Justo e Injusto.
Eneida, Ambição de Virgílio
Virgílio, ao escrever esta epopeia, inspirou-se em Homero (Imitatio), tentando superá-lo: Virgílio empenhou-se em fazer da Eneida o poema mais perfeito de todos os tempos. De certa forma, a primeira metade (seis primeiros cantos) da Eneida tenta superar a Odisseia, enquanto a segunda tenta superar a Ilíada. A primeira metade é um poema de viagem e a segunda um poema bélico.
A Eneida, escrita por Virgílio no século I a.C., é um poema épico que conta a saga de Eneias, um troiano filho da deusa Vênus, que fugiu de Troia em chamas e viajou errante pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica. Ali seus descendentes fundaram Roma. Eneias é, portanto, o ancestral heroico e semidivino do povo romano. Além de uma fonte da história da civilização romana, a Eneida é uma das mais belas composições da literatura latina antiga. É, acima de tudo, uma obra de propaganda que glorifica os heróis romanos, suas conquistas e, sobretudo, o imperador Augusto (27 a.C. -14 d.C.). O poema exalta o destino traçado pelos deuses ao povo romano e a construção de um poderoso império muito antes da própria fundação de Roma.
Augusto encomendou a Virgílio uma obra monumental que explicasse a conquista de um império tão extenso graças à proteção dos deuses e ao respeito às virtudes romanas entre as quais gravitas (responsabilidade e determinação), pietas (devoção e respeito à ordem social, política, religiosa e à pátria), virtus (coragem, especialmente dos líderes sociais e políticos) e fides (fidelidade, lealdade à palavra dada). Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.) era um velho amigo de Augusto. Para ele compôs a Eneida, um épico de dez mil versos que refaz a jornada de Eneias desde a queda de Tróia até sua chegada e instalação na Itália. O poema fornece a legitimação da origem semidivina dos romanos e faz de Augusto o descendente direto dos heróis fundadores. A Eneida é, portanto, um mito fundador por excelência. Vamos analisar brevemente os seguintes elementos importantes do poema: O mito fundador e a origem grega A figura do pai (pater familias) O desaparecimento de Creusa Eneias errante A descida aos infernos O nascimento de gêmeos O abandono (exposição) das crianças O assassinato de Remo O povoamento de Roma
O mito fundador e a origem grega O tema da Eneida é a celebração das grandezas de Roma e glorificação do imperador Augusto enaltecendo sua ascendência: ele é herdeiro de Júlio César que, por sua vez orgulhava-se de descender de Iulo (Ascânio), filho de Eneias, que era filho de Vênus, a deusa do amor. Têm-se aí, portanto, a genealogia heroica e divina de Augusto. O poema legitima também as grandes famílias romanas, buscando entre os companheiros de Eneias, troianos ilustres, a origem das famílias patrícias. Os líderes (patres, daí o termo patrício) dessas famílias reúnem-se em assembleia – o Senado, originalmente o órgão consultivo do rei. O mito fundador instrumentaliza o passado e o papel da história na construção de identidades individuais como coletivas. Dá à comunidade consciência da grandeza de suas origens e, no caso de Roma, interessava aos imperadores manter o povo orgulhoso de sua ascendência heroica e divina. A lenda de Eneias era popular em Roma e já tinha inspirado poetas a cantarem sua saga e relacionarem a fundação da cidade de Roma à chegada de Eneias à Itália. O cronista grego Hellanicos de Mitilene, do século V a.C. em sua obra Deucalionea, foi o primeiro a mencionar o mito da fundação de Roma pelo troiano Eneias. O mito ganhou maior força no século III a.C., época das guerras púnicas e dos primórdios do expansionismo romano fora da Itália. Os romanos parecem então buscar uma origem “fabulosa” para justificar suas conquistas. A origem troiana de Roma que, até então, era apenas uma crença esparsa, começou a ganhar consistência e parece que foram os magistrados romanos que lhe deram uma consagração oficial. As famílias patrícias passaram a criar genealogias que as ligavam a Eneias ou a seus companheiros troianos. É interessante e importante notar que todas as versões da fundação de Roma (conhece-se 25) remetem aos gregos. Afinal a pólis era o modelo universal para pensar a vida das pessoas “civilizadas”, em oposição aos “bárbaros. Daí os romanos buscarem uma origem grega, caso contrário seriam “bárbaros”. Os troianos são gregos, a Ilíada não os diferencia de seus inimigos: ambos têm a mesma cultura, mesma língua, mesma religião. ”O problema principal da civilização romana é que de suas profundas relações com o helenismo”, escreveu Pierre Grimal (1984). A Grécia foi, desde os primórdios da história romana, a referência para todo o material intelectual, cultural e artístico que assegurava o refinamento da vida urbana romana. A figura do pai (pater familias) A sociedade romana era uma sociedade patriarcal por excelência. A figura do pater familias estava acima de tudo. Mesmo os filii homens adultos permaneciam debaixo da autoridade do pater enquanto este vivesse, e não podiam adquirir os direitos de pater familias até à sua morte. O pater tinha o papel de transmitir os valores ao filho e de assegurar sua integração na comunidade. O aprendizado para a sociabilidade do jovem romano não pode ser confiado a um homem estrangeiro. Roma é essencialmente a “cidade dos pater familias“, enquanto a cidade grega é vista como a “cidade dos irmãos”. O imperador, como cabeça da sociedade e da política, era o Pater Patriae (Pai da Pátria), título usado por quase todos os imperadores romanos desde Augusto. Eneias é o modelo de amor e respeito filial como demonstra sua escolha em levar o pai ancião na fuga de Troia. Enquanto outros fogem carregando ouro e riquezas, o príncipe troiano decide levar seu velho pai Anquises às costas, bem como seus penates (deuses do lar). O gesto tem também a função educativa de transmitir ao filho Iulo (Ascânio), que ele segura em sua mão, as virtudes romanas.
O desaparecimento de Creusa Eneias era casado com Creusa, filha dos reis de Troia, Príamo e Hécuba. Quando saíram da cidade em chamas, Creusa caminhou atrás do grupo. A um certo ponto, Eneias percebeu que ela havia desaparecido. Apesar dos riscos, partiu em busca da mulher. Creusa lhe apareceu então como uma sombra, exortando-o a prosseguir na fuga e chegar à Itália onde estariam reservados para ele a prosperidade, um reino e uma esposa real. Como viúvo, Eneias começa sua jornada. Isso lhe deixa livre para encontrar uma mulher nobre e poderosa que lhe daria a oportunidade de reinar em uma nova pátria. Poderia ter sido Dido, rainha de Cartago, mas será Lavínia, a filha do rei dos latinos. O pequeno grupo de troianos que chegará ao Lácio terá a necessidade de se unir às mulheres latinas. O povo romano será o fruto dessa miscigenação. E Creusa seria a vítima sacrificial para a necessária fusão dos troianos com o povo do Lácio. Eneias errante A jornada épica de Eneias tem por modelo, obviamente a Ilíada e a Odisseia, de Homero. A longa e perigosa viagem leva o herói à Trácia, Delos, Creta, Sicília e, tal como Ulisses, enfrenta perigos e monstros: as terríveis Harpias, a perigosa Caríbdis, os cruéis cíclopes. Esta peregrinação se deve muito à intervenção vingativa de Juno (Hera), esposa de Júpiter (Zeus), que odeia os troianos desde que Paris recusou lhe dar a maçã de ouro, recompensando a mais bela das deusas. A proteção de Vênus (Afrodite), porém, livra o herói das armadilhas de Juno. As aventuras de Eneias, sua estada em Cartago, seu casamento com Lavínia, toda essa história guerreira e romântica, embora legendária e fantástica, fazia parte da tradição romana da época de Virgílio e tinha uma função político-social. O poeta transportou esse conjunto de lendas e mitos para o seu poema, deu-lhe uma sequência narrativa e lhe conferiu um significado mais elevado. Roma estava predestinada pelos deuses a ser grande, desde as ruínas fumegantes de Troia de onde Eneias fugiu. Ele não verá Roma que só surgirá seiscentos ou quinhentos anos mais tarde, mas a cidade já existe no destino traçado pelos deuses. Roma existe desde a eternidade, a cidade eterna.
A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Troia e das viagens e peripécias de Eneias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Eneias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Eneias e seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Eneias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Eneias para lhe lembrar que seu destino é encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Troia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Eneias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba. Sentindo-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecida pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Eneias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio.
V- Os jogos fúnebres
Eneias aporta à Sicília e decide realizar jogos fúnebres em honra de seu pai Anquises. Já se passou um ano desde que este morreu.
(Este capítulo é importante para quem estuda a antropologia dos romanos porque dá indicações de como eles se relacionavam com a morte.)
A descida aos Infernos A descida aos Infernos narrada no Canto VI exprime a crença de Virgílio na metempsicose encontrada em Pitágoras e Platão. A metempsicose ou transmigração das almas é a crença de que a alma humana, depois da separação do corpo, pode animar outros corpos, de homens, de animais ou até de vegetais. A explicação é dada por Anquises que diz ao filho sobre a origem e o destino da alma. As almas dos homens são uma emanação do sopro divino, uma parcela da alma universal que vivifica o universo inteiro. Mas, desde que esse sopro se une ao corpo, ele perde nesse contato uma parte de sua pureza: fechada nas trevas dessa prisão, a alma não vê mais o céu, e mesmo quando ela é libertada, conserva manchas que devem ser lavadas. A alma passa por purificações que duram mil anos para lhe devolver a pureza original. Passado esse tempo, a alma bebe as águas do rio Letes, para que, esquecida do passado, ela deseje rever a terra e entrar num corpo novo. Este é um dos episódios mais famosos da Eneida. Depois de Eneias ter partido da Sicília fez escala em Cumas. Nesse local consulta uma sacerdotisa (uma sibila — antes o termo era empregado como nome próprio e com o tempo passou a ser usado como comum para todas aquelas que servissem a um deus) de Apolo. Ele tem um desejo intenso (em sonhos seu pai o havia conclamado a fazê-lo) de falar uma última vez com seu pai para lhe pedir conselho sobre a viagem. Obtém permissão de descer ao mundo dos mortos (este episódio faz lembrar outras descidas famosas ao mundo dos mortos: o episódio de Orfeu e Eurídice, a nekya de Odisseu, no canto XI da Odisseia. No mundo dos mortos vê vários espectros. Um deles o de Dido que, ladeada por seu primeiro esposo, não lhe responde.
O seu pai Anquises dá-lhe importantes informações sobre a sua viagem e faz uma longa profecia sobre o futuro glorioso de Roma.
VII- Chegada ao Lácio
(Latium (Lácio), província romana onde Roma se situará).
Após a atribulada viagem de Enéias, este finalmente chega à Itália. Ao chegar, se encontra com Latino, rei do Lácio, ao qual pede abrigo e hospitalidade. O rei recebe Eneias e oferece-lhe a mão de sua filha única, Lavínia, herdeira do trono. Turno, rei dos rútulos apaixonado pela princesa, opõe-se à união. Juno aparece em um sonho de Turno e instiga-o a guerrear contra Eneias.
VIII- Evandro. Descrição do escudo de Eneias
O canto VIII começa com o rio Tibre a falar com Eneias, que lhe diz que deverá fazer aliança com Evandro e o seu povo. Eneias e os troianos são recebidos por Evandro com um banquete de consagração a Hércules, Evandro conta a história do monstro Caco. Evandro leva Eneias a uma visita guiada, mostrando-lhe a cidade. Vénus suplica armas a Vulcano, seu marido. Vulcano forja então o escudo de Eneias (remetendo-nos para o episódio do escudo de Aquiles, da Ilíada de Homero).
A tradição literária e religiosa conhece outros episódios de descida aos Infernos: Homero, na Odisseia (canto X), Platão, na República (Livro X), no mito de Teseu, no mito de Orfeu e Eurídice. O mundo subterrâneo, com todo o misterioso desconhecido que encerra, apresentava-se aos antigos como um reino onde a verdade podia ser encontrada, porque as almas dos mortos estavam livres para contar sobre o que viveram e fizeram no mundo dos vivos. O tema inspirou Dante Alighieri para sua Divina Comédia (1304-1321) onde o poeta é acompanhado pelo próprio Virgílio na viagem pelos círculos do Inferno. Na Eneida, a descida aos Infernos não é para revelar o que aconteceu mas para que Eneias vislumbre o futuro glorioso de seus descendentes: a fundação de Roma e a construção de um império. Todos os grandes nomes da história romana lhe são revelados: os reis, Catão, os Gracos, Júlio César, Pompeu culminando com Augusto. O nascimento de gêmeos O nascimento de gêmeos é um fenômeno que, para os antigos, causava um certo temor. Era entendido como um prodígio, um sinal divino. Como interpretar a existência de dois irmãos fundadores? Alguns historiadores consideram que natureza gemelar de Rômulo e Remo refletiria as várias dualidades existentes na história de Roma: Dualidade social: os patrícios e plebeus. Os montes onde cada irmão viu os prodígios, referenciam a dualidade social. O monte Palatino, onde ficou Rômulo, era a sede do poder e das residências dos patrícios; o monte Aventino, do infeliz Remo, era onde estava o bairro dos plebeus. Dualidade étnica: presente na formação da sociedade romana inicialmente composta por troianos e latinos, e depois por romanos e sabinos. Dualidade que aponta para a tendência à miscigenação da civilização romana. Dualidade do consulado republicano: há dois irmãos fundadores, e isso se reproduz sob a República quando havia dois cônsules. Plausíveis ou não, todas essas hipóteses levam à mesma conclusão: o motivo dos gêmeos é de data recente na elaboração do mito na forma como o conhecemos, quando os romanos começam a refletir sobre suas origens e suas instituições. Seja como for, a presença de um gêmeo é um problema de compartilhamento de poder. Um dos dois irmãos terá que desaparecer. O abandono (exposição) das crianças Rômulo e Remo são concebidos fora das regras do casamento legítimo e são condenados à morte por exposição, isto é, abandonados em um cesto lançado ao rio. Esta cena aparece em muitas narrativas míticas e históricas: Krishna (Índia), Sargão de Acade (Mesopotâmia), Ciro (Pérsia), mito de Perseu, Páris (Troia), Moisés (na Bíblia), rei Arthur (lenda céltica). Em todos eles, há características comuns na construção do herói típico: concepção ou nascimento incomum, com intervenção divina; família real (pai ou mãe é nobre ou divino); seu nascimento ameaça o soberano do lugar, sempre um déspota ou um usurpador que deve ser derrubado para se restaurar a ordem natural legítima; abandono nas águas seguido de salvação por um animal selvagem ou por um homem de condições modestas; proteção sobrenatural e um destino extraordinário: governar um povo, conquistar um império, fundar uma cidade; infância isolada, incógnita e à margem das demais pessoas, quase sempre em um bosque distante; reconhecimento da verdadeira identidade e acesso ao status do qual foi roubado; morte fora do comum ou desaparecimento inexplicável.
O assassinato de Remo Como Rômulo, escolhido por Júpiter, carrega a mancha do assassinato de seu irmão? Como interpretar esse fratricídio no ato fundador de Roma? Para alguns, Rômulo não é culpado, ele apenas protegia a cidade que os deuses lhe davam a missão de fundar. Os escritores romanos usam o termo ludibrium (zombaria) para descrever o ato de Remo. Ludibrium se opõe à virtude capital dos romanos, a gravidade. O ato de Remo é um sacrilégio. Há, portanto, uma “moralidade” no assassinato: Remo se comporta como um inimigo do povo romano e Rômulo reage como um defensor da cidade. O dever cívico prevalece sobre os laços de sangue. A fundação de Roma no sangue de um irmão mostra o caráter implacável da cidade que não temerá nem poupará nada nem ninguém. Mas há também uma interpretação histórica para o fratricídio: a agitação política dos últimos séculos da República, a rivalidade sangrenta entre diferentes facções, levou alguns autores antigos (Cícero, Horário e Ovídio) a considerarem o fratricídio como uma maldição sobre a cidade de Roma. O povoamento de Roma O povoamento se deu inicialmente com gente de todo lugar, uma gente desqualificada que buscava refazer a sua vida na nova cidade que os recebia. O mito assinala um aspecto fundamental da civilização romana: a grande capacidade de assimilar estrangeiros, inclusive escravos libertos. Diferentemente da Grécia, em Roma um escravo libertado pelo seu senhor, se era cidadão, automaticamente se tornava cidadão romano. O episódio do povoamento pode refletir, também, uma vontade das grandes famílias patrícias de se destacarem da plebe. Sendo eles os descendentes dos companheiros de Eneias, são, naturalmente, os que detêm a autoridade sobre a cidade, restando aos demais – gente desqualificada recusada em outras cidades mas recebida em Roma – o papel de servir aos patrícios como clientes. Finalmente, o rapto das sabinas reforçava o caráter miscigenador da sociedade romana. Este evento concentra em Rômulo três funções importantes do herói fundador: soberania, força bélica e fertilidade. Surgida em meados do século VIII a.C. com a fundação de Reino de Roma, vigorou por mais de mil anos na península Itálica.
O romano, que impregnava a sua vida pelo nume, uma força divina indefinida presente em todas as coisas, estabeleceu com os deuses romanos um respeito escrupuloso pelo rito religioso o Pax deorum – que consistia muitas vezes em danças, invocações ou sacrifícios. Os romanos acreditavam que o rei tinha origem divina. Esse período foi marcado pela invasão de outros povos (etruscos) que durante cerca de 100 anos, dominaram a cidade, impondo-lhe seus reis. Em 509 a.C., os romanos derrubaram o rei etrusco (Tarquínio - o Soberbo), e fundaram uma República.. Ao lado dos deuses domésticos, os romanos tinham diversas divindades, adaptadas várias vezes ao longo das várias fases da História de Roma. Assim, à tríade primitiva constituída por Júpiter (senhor do universo), Marte (deus da guerra) e Quirino (o rei Rómulo, mitológico fundador de Roma), os etruscos inseriram o culto das deusas Minerva (deusa da inteligência e sabedoria) e Juno (rainha do céu e esposa de Júpiter),
Com a república surgiu Ceres (deusa da Terra e dos cereais), Líber e Libera. Mais tarde, a influência grega inseriu uma adaptação para o panteão romano do deus grego do comércio e da eloquência (Mercúrio) sob as feições de Hermes, e o deus grego do vinho (Dioniso), como Baco.
Chamamos de Alto Império o período que se estende da sagração de Otávio (ver o texto Império Romano - República - Da crise ao Principado), em 27 a.C, até meados do século 3 d.C. Basicamente, esse é o período de consolidação e apogeu do poder romano.
A ordem política imperial teve como elemento mais importante a centralização das decisões nas mãos do imperador. A manutenção do Senado - necessária por ser ele a mais tradicional instituição romana e para impedir a caracterização de um regime despótico - foi acompanhada de uma drástica redução do seu poder efetivo, restando-lhe apenas a administração da Itália e das províncias sem guarnições militares (Províncias Senatoriais).
O imperador controlava a religião, o Exército, as funções legislativa e judiciária, as finanças do Estado, a política externa e as províncias mais importantes. A redução do poder do Senado causou choques entre este e o poder imperial, choques que sempre foram resolvidos pelo uso da força militar, na qual se apoiava o imperador.
O Exército, com um efetivo de mais de 300.000 homens, foi estacionado ao longo das fronteiras do Império, o chamado limes, para resguardar Roma dos ataques bárbaros. O Exército era composto por uma força profissional (as legiões, de recrutamento obrigatório entre os cidadãos romanos) e por forças auxiliares, de recrutamento provincial. Otávio Augusto criou também uma força militar de elite, a Guarda Pretoriana, aquartelada em Roma, para a proteção pessoal do imperador.
"A experiência é um troféu composto por todas as armas que nos feriram." - Marco Aurélio
A mitologia antiga nunca desapareceu – nem desparecerá – por completo do espírito europeu, uma vez que regressa constantemente. Ao longo da história cultural da Europa, a mitologia antiga sempre reapareceu – e provavelmente sempre reaparecerá – com uma funcionalidade e uma aparência exterior diferentes. Na sua divisão tripartida da história europeia – a idade da antiguidade greco-romana; a idade intermédia de decadência, equiparada à época da Idade Média; a época moderna que começou com o renascimento das artes e do espírito antigo – Erwin Panofski chamou a atenção para o fato de que o Renascimento teve antecessores. Assim, o Renascimento não emergiu “like Athene from the head of Zeus” (Panofski, 1944), identificando, no século IX, o “Carolingian revival” no qual houve uma variedade de reprodução de motivos clássicos, e sobretudo de “pictures of the Greek and Roman gods and demi-gods who thus came to be transmitted to the mediaeval world in their authentically pagan shape and form. ”No século XIII, surgiu uma “Proto-Renaissance”, assinalada por Panofski como um fenómeno mediterrâneo, visto que aconteceu sobretudo no sul da França e no norte da Itália (Ibid; Burckhardt, 1988). No entanto, no que diz respeito à presença da mitologia clássica nas artes, na literatura ou no pensamento em geral, o “Alto Renascimento” significa um nível inteiramente novo. A partir desta altura, os contos míticos e os deuses da antiguidade já não se limitam a uma simples recessão estética da antiguidade, eles entram, de novo, em concorrência com uma verdade singular produzida pelo cristianismo. A mitologia clássica começa a ser utilizada de forma poética e hermenêutica que produz novos mecanismos psíquicos ou possibilidades cognitivas, relacionados com formas diferentes de entender a natureza, a transcendência e o cosmos. O Renascimento representa uma “vida póstuma da antiguidade” (Warburg, 1998) ou a “sobrevivência dos deuses” (Seznec, 1972), verificando o regresso cíclico das divindades antigas. Os deuses ganharam, a partir do Renascimento, uma nova vitalidade e asseguram o seu lugar permanente na história cultural da Europa – e proporcionaram uma opção alternativa de compreensão racional, descrita, em tempos mais recentes, como pensamento polimítico. Num pequeno e polémico texto, publicado pela primeira vez em 1979 e intitulado Lob des Polytheismus. Über Monomythie und Polymythie [Elógio do Politeísmo. Sobre Monomitia e Polimitia], Odo Marquard constatou uma certa pobreza intelectual e cultural no mundo moderno enquanto resultado de um pensamento unidimensional que permite, em geral, apenas uma narrativa única e exclusiva. Na sua argumentação, Marquard entendeu a desmitologização como um mito moderno, e defendeu um reconhecimento de uma variedade de narrativas a partir de um pensamento plural (Marquard, 1981). Na sua conciliação do pensamento plural com a mitologia clássica, Marquard encontra-se filosoficamente no mesmo terreno que muitos poetas, artistas ou pensadores que tentaram, desde o Renascimento, uma revitalização da mitologia clássica. Os Poetas da Mitologia:
Homero, de cujos poemas "Ilíada" e "Odisséia" tiramos a maior parte dos nossos capítulos sobre a Guerra de Tróia e o regresso dos gregos, é um personagem quase tão mítico quanto os heróis que celebra. A versão tradicional é que ele era um menestrel vagabundo, cego e velho, que viajava de um lugar para outro, cantando seus versos ao som da harpa, nas cortes dos príncipes ou nas cabanas dos camponeses, e vivendo do que lhe davam voluntariamente os ouvintes. Byron o chama de "o velho cego da rochosa ilha de Sio" e um bem conhecido epigrama alude à incerteza quanto à sua terra natal:
De ser berço de Homero a glória rara
Sete cidades disputaram em vão.
Cidades onde Homero mendigara
Um pedaço de pão.
Essas cidades eram Esmirna, Sio, Rodes, Colofon, Salamina, Argos e Atenas.
Eruditos modernos põem em dúvida o fato de os poemas de Homero serem obras da mesma pessoa, em vista da dificuldade de se acreditar que poemas tão grandes pudessem ser da época em que se supõe terem sido escritos, época essa anterior às mais antigas inscrições ou moedas existentes e quando os materiais capazes de conter tão longas produções ainda não existiam. Por outro lado, indaga-se como poemas tão longos poderiam ter chegado até nós, vindos de uma época em que só poderiam ter sido conservados pela memória. Esta última dúvida é explicada pelo fato de que havia, então, um corpo de profissionais, chamados rapsodos, que recitavam os poemas de outros e tinham por encargo decorar e declamar, a troco de pagamento, as lendas nacionais e patrióticas.
Atualmente, a opinião da maioria dos eruditos parece ser a de que o esboço e grande parte da estrutura dos poemas pertencem a Homero, mas que há muitos acréscimos feitos por outras mãos.
Segundo Hérodoto, Homero viveu cerca de oito séculos e meio antes de Cristo.
Virgílio:
Virgílio, também chamado pelo seu sobrenome de Marão, e de cujo poema, "Eneida", tiramos a história de Enéias, foi um dos grandes poetas que tornaram o reinado do imperador romano Augusto tão célebre. Virgílio nasceu em Mântua, no ano de 70 a.C. Seu grande poema é considerado inferior apenas aos de Homero, no mais elevado gênero de composição poética, o épico. Virgílio é muito inferior a Homero em originalidade e invenção, mas superior em correção e elegância. Para os críticos de origem inglesa, somente Milton, entre os poetas modernos, parece digno de ser classificado entre aqueles ilustres antigos.7 Seu poema Paraíso Perdido, que citamos tantas vezes, é igual sob muitos aspectos, e superior, em alguns a qualquer uma das grandes obras da antigüidade.
Ovidio:
Freqüentemente chamado pelo seu outro nome de Nasão. Ovídio nasceu em 43 a.C. Foi educado para a vida pública e exerceu alguns cargos importantes, mas a poesia era o que lhe interessava e resolveu a ela dedicar-se. Assim, procurou a companhia dos poetas contemporâneos, tendo travado conhecimento com Horácio e mesmo com Virgílio, embora este último tivesse morrido quando Ovídio ainda era demasiadamente jovem e obscuro para que houvesse amizade entre os dois. Ovídio viveu em Roma gozando fartamente a vida, graças a uma renda razoável. Desfrutava a intimidade da família de Augusto e dos seus, e supõe-se que alguma ofensa grave cometida contra algum membro da família imperial foi a causa de um acontecimento que pôs fim à felicidade do poeta e amargurou a última parte de sua vida. Quando contava cinqüenta anos de idade, Ovídio foi banido de Roma, recebendo ordem de ir viver em Tomi, à margem do Mar Negro. Ali, entre um povo bárbaro e sujeito a um clima severo, o poeta, que estava acostumado aos prazeres de uma luxuosa capital e ao convívio dos mais ilustres de seus contemporâneos, passou os últimos dez anos de sua vida devorado pelo sofrimento e pela ansiedade. Seu único consolo no exílio foi dirigir cartas, escritas em forma de poesia, à esposa e aos amigos. Embora esses poemas ("Os "Tristes" e as "Cartas do Ponto") não falassem em outra coisa a não ser nas mágoas do poeta, seu bom gosto e a habilidosa invenção livraram-nos da pecha de tediosos e são lidos com prazer e mesmo com simpatia.
As duas grandes obras de Ovídio são as "Metamorfoses" e os "Fastos". São ambos poemas mitológicos, e tiramos do primeiro a maior parte dos episódios narrados neste livro sobre a mitologia grega e romana.
Um escritor moderno assim caracteriza esses poemas:
"A rica mitologia da Grécia ofereceu a Ovídio, como ainda pode oferecer ao poeta, ao pintor e ao escritor, os materiais para a sua arte.
Com raro bom gosto, simplicidade e emoção, ele narrou as fabulosas tradições das idades primitivas e deu-lhes uma aparência de realidade que somente a mão de um mestre conseguiria. Suas descrições da natureza são vivas e verdadeiras; escolhe com cuidado o que é adequado; rejeita o superficial; e, quando completa sua obra essa não apresenta nem insuficiência nem redundância. As "Metamorfoses" são lidas com prazer pelos jovens e relidas com maior prazer ainda pelos mais idosos. O poeta aventurou-se a prever que seu poema lhe sobreviveria e seria lido enquanto o nome de Roma fosse conhecido." É fato bastante conhecido que Platão (2006) “expulsa” os poetas de sua cidade ideal, por considerar a poesia falsa, mas também sedutora – visa ao prazer – e deformadora do caráter emocional. Entretanto, pela boca de Sócrates, avisa que ela poderá ser restabelecida: “Mesmo assim, fique dito que, se a poesia imitativa que visa ao prazer pudesse apresentar um argumento que prove que é necessário que ela tenha um lugar numa cidade bem administrada, prazerosos, nós a acolheríamos porque temos consciência de que ela exerce um encanto sobre nós.” (PLATÃO, 2006). Fernando Santoro (2007; 2008) apresenta uma interessante interpretação a partir desse fato: o desafio teria sido lançado aos próprios discípulos da Academia, a escola de Platão. Neste norte, Aristóteles, como o melhor discípulo, aceitou e venceu o desafio, ao demostrar a utilidade moral e política da poesia e ao responder as acusações imputadas por Platão a esta arte. Assim, tece uma argumentação que, não apenas descreve as formas de arte literária de seu tempo, mas procura demostrar seu valor na formação do cidadão.
Direcionado nesta perspectiva, este ensaio visa estudar as contribuições do pensador grego antigo Aristóteles aos Estudos Literários, com destaque para os conceitos de mimese, verossimilhança e catarse. O objetivo, portanto, não é elencar a totalidade das contribuições do Filósofo Estagirita para os estudos artísticos, culturais e literários, ou mesmo para os estudos linguísticos e semióticos, o que seria impossível. Também, não se pretende fazer um estudo detalhado da obra “Poética”, de autoria do referido pensador, em seus temas e debates decantados ao longo do percurso civilizatório ocidental e, que ainda suscita na atualidade. Mas, sim, destacar alguns conceitos, ideias que continuam no debate filosófico e científico atual e contribuem para a reflexão sobre a literatura, o teatro e o cinema. Para atingir os objetivos em tela, se valeu da obra: “Poética”, em tradução de Ana Maria Valente e publicada, em Lisboa, pela Fundação Calouste Gulbenkian, importante instituição cultural lusófona, na coleção Textos Clássicos, e cuja 3ª edição é de 2008. Ademais, recorreu-se a conceituados/as comentadores/as da referida obra. Portanto, uma pesquisa de caráter bibliográfico e qualitativo, adequado ao debate de ideias e de leitura crítica de um pensador fundamental para a tradição ocidental.
Em um primeiro momento, faz-se a apresentação do autor e sua obra sobre a arte poética, na sequência apresentam-se os conceitos de mimese, verossimilhança e catarse, em um terceiro momento se reflete sobre a perenidade da perspectiva aristotélica nos estudos literários.
Aristóteles e a Poética:
Aristóteles é um dos mais importantes pensadores, não somente da antiguidade grega, mas da tradição ocidental. Nasceu em Estagira, na Macedônia, de onde vem seu epíteto “Estagirita”, em 384 AEC., filho de um médico da corte do Rei da Macedônia Amintas III, chamado Nicômaco. Foi discípulo de Platão por dezenove anos e preceptor de Alexandre, imperador macedônio que dominou uma vasta região no Mediterrâneo Oriental e no sudoeste da Ásia. Não foi permitido que assumisse a coordenação da Academia, escola de Platão, provavelmente por ser estrangeiro, assim, criou sua própria escola, chamada Liceu, na qual tinha o hábito de lecionar durante caminhadas, dando origem ao termo que define sua corrente: “peripatética”. Depois da morte de Alexandre, se afastou de Atenas, pois era macedônio, e veio a falecer em 322 AEC.
Demonstrou interesse por todas as áreas do conhecimento de seu tempo e se propôs a fazer contribuições a elas. Diferentemente de seu mestre, se interessou pela pesquisa empírica e por questões físicas e biológicas, o que pode estar ligado ao fato de ser filho de um médico. Sua pretensão era superar o pensamento de seus antecessores, incluindo aqueles que são rotulados de pré-socráticos. As diferenças, mas também, os diálogos, entre as filosofias platônica e aristotélica marcaram o pensamento ocidental e encontram reverberações até a atualidade. Além de ter contribuído de forma expressiva para as ciências da natureza, seu trabalho se destaca na ética, na política, na lógica e na metafísica ou ontologia.
Parte significativa da obra de Aristóteles se perdeu, especialmente os textos exotéricos, ou seja, destinados ao público, subsistindo obras esotéricas, portanto, destinadas aos estudantes, já iniciados no conteúdo, assim como anotações para aulas feitas pelo próprio filósofo ou por seus discípulos. Ademais, em alguns casos restaram fragmentos das obras, inviabilizando o acesso ao texto completo. Todas estas questões explicam, em parte, por que os textos podem soar incompletos, áridos, repetitivos ou mesmo inconsistentes. Deve-se a Andrônico de Rodes a compilação do corpus aristotelicum, por volta do ano 50 AEC., em Roma. A ele se atribui, também, a criação do termo metafísica para definir o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira.
A obra “Poética” (2008) – também traduzida como A Arte Poética, Sobre a Poética... – aborda a arte que lhe dá título, suas espécies, o efeito de cada uma, os enredos, a natureza e as partes. Seu foco é a tragédia, mas também trata de outros gêneros da época, tais como a epopeia, a comédia, a ditirâmbica e a citarística (2008). É importante ressaltar, no entanto, que na época não havia a diferenciação que se faz hoje, de modo que o livro aborda a literatura de forma geral. É o primeiro texto filosófico a tratar especificamente o discurso literário. Nesta perspectiva, pode ser considerado, como fundador da teoria da literatura, apesar de haver referências anteriores, como em Platão. A obra não se apresenta como um tratado ou algo do gênero, mas sim, é composta de notas que seriam utilizadas nas aulas proferidas no Liceu. Ademais, considerando o extravio de parte considerável da obra de Aristóteles como acima exposto, em relação a obra em análise seu original se perdeu. O texto que se tem acesso é a compilação de diferentes manuscritos gregos, latinos e árabes realizados em meados da Idade Média, o que torna o texto limitado em certos aspectos do debate, bem como obscuro e de difícil interpretação (COSTA, 2008; JAPIASSÚ & MARCONDES, 2001; MARCONDES, 2008; PEREIRA, 2008)
Apesar da influência de Aristóteles em outras áreas do conhecimento, somente no renascimento a Poética se tornou lida e estudada, e mais que isto, pensada como uma espécie de manual do fazer poético, sobretudo, da tragédia e da epopeia. Vale ressaltar que a obra se detém a estudar, sobretudo, a tragédia e a epopeia, apenas antevendo que em outro texto estudariam outros gêneros. A possibilidade de haver um segundo volume, sobre a comédia nunca foi encontrada, mas provocou a imaginação de diversos autores, como Umberto Eco (2011), que transformou a procura pela obra aristotélica sobre a comédia no argumento articulador de sua obra literária: “O Nome da Rosa”. Nos primeiros parágrafos, o autor (ARISTÓTELES, 2008) deixa claro seu objetivo com a obra: falar da arte poética em si, de suas espécies, dos efeitos destas espécies, dos enredos e das partes. Cabe ressaltar, no entanto, que a expressão poesia à época tinha um sentido mais amplo que lhe a atribuímos na atualidade. Portanto, quanto Aristóteles usa este termo é em um sentido que hoje abarcaria também a ficção, portanto, sinônimo de literatura.
Assim, Aristóteles influenciou de forma evidente o que hoje é denominada teoria da literatura ou estudos literários, mas também os estudos sobre o teatro, o cinema e outras artes. Doc Comparato (2009), por exemplo, afirma que sob o ponto de vista estético e teórico, Aristóteles e sua Poética constituem um ponto de reflexão obrigatória para o estudo da dramaturgia, uma obra de conhecimento obrigatório para todos que se dedicam a escrever para cinema, televisão, teatro e outras mídias.
Parte significativa do livro “Poética” (ARISTÓTELES, 2008) se dedica a estudar a tragédia, considerada por Aristóteles como a forma mais elevada de mimese artística. Ao destacar as partes deste tipo de teatro, considera que a mais importante é o mito, traduzido, também por fábula, história ou intriga. São elementos organizados de forma verossímil, se opondo a aleatoriedade da realidade. Vale ressaltar que, neste contexto, mito não significa explicação sobre a origem do mundo. Igualmente, fábula não se refere a contos infantis vividas por animais e com uma moral. O conceito apresentado na obra citada pode ser traduzido como intriga ou história. O mito é o fundamento da tragédia, mas também, da epopeia, e responsável pela peripécia e pelo reconhecimento, isto é, pelas ações tomadas pela personagem protagonista que a levarão a se confrontar com o aspecto trágico da existência e ao seu entendimento. Neste norte, a história não deve iniciar ou terminar ao acaso, mas precisa ter princípio, meio e fim, formando um todo, dentro do que o filósofo considera critérios de necessidade ou probabilidade. Assim, todas as partes devem ser necessárias, de forma que a supressão ou deslocamento, provocaria a mudança no mito ou mesmo o tornaria sem sentido, portanto, a obra deve ser um “todo”. (ARISTÓTELES, 2008)
Ser um todo é ter princípio, meio e fim. Princípio é aquilo que, em si mesmo, não sucede necessariamente a outra coisa, mas depois do qual aparece naturalmente algo que existe ou virá a existir. Pelo contrário, fim é aquilo que aparece depois de outra coisa, necessariamente ou na maior parte dos casos, e a que não se segue nada. Meio é aquilo que é antecedido por um e seguido pelo outro. Portanto, é necessário que os enredos bem estruturados não comecem nem acabem ao acaso, mas sim apliquem os princípios anteriormente expostos. (ARISTÓTELES, 2008)
Para Aristóteles (2008), o belo não pode ser reduzido ou imenso, mas precisa ter uma extensão ideal, adequado à capacidade da memória de reter o mito e assim se efetivar o efeito mimético. O belo se relaciona com a harmonia das partes, mas também com a extensão, esta imposta pela necessidade das coisas. Cabe ao poeta, assim, escolher os elementos e organizá-los:
[...] Os limites da extensão, de acordo com os concursos e a faculdade de percepção, não são do âmbito da arte, pois, se fosse preciso apresentar a concurso cem tragédias, competiriam perante as clepsidras como aconteceu algumas vezes, segundo dizem. Pela própria natureza da acção, em matéria de duração, o limite mais amplo, desde que se seja perfeitamente claro, é sempre o mais belo. Para dar uma definição em termos genéricos, o limite conveniente da extensão é que esta seja tal que reúna, de acordo com o princípio da verossimilhança e da necessidade, a sequência dos acontecimentos, mudando da infelicidade para a felicidade e vice-versa. (ARISTÓTELES, 2008)
Esta questão da unicidade do poema pode ser vista, conforme reforça Aristóteles (2008), nas epopeias homéricas. A Ilíada (HOMERO, 2013) aborda a fúria de Aquiles e a Odisseia (HOMERO, 2011) o retorno de Ulisses para Ítaca. Assim, tanto a epopeia, quanto a tragédia, os gêneros em cuja reflexão Aristóteles (2008) se aprofundou, devem evitar a heterogeneidade das partes e focar em um evento. Há, portanto, uma diferença com relação à História que pode abordar diversos fatos concomitantes, enquanto a poesia não. Também, neste item Homero é o exemplo de poeta, cujas obras possuem um enredo único.
Pelo exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu, mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da verossimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada o seu carácter de História). Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verossimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois, nomes às personagens. (ARISTÓTELES, 2008)
Neste norte, a poesia se aproxima da filosofia, por representar a realidade que deveria ser e não os fatos particulares. A poesia não se caracteriza pelo uso do verso, e sim, pela abordagem do verossímil e do necessário.
Ademais, o poeta não precisa se ater aos mitos tradicionais já conhecidos do público nem a invenção totalmente original, mas à capacidade de organizar a história.

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