“Quem tem um porquê para viver, suporta quase qualquer como.” — Viktor E. Frankl
1. Uma filosofia forjada no extremo
À entrada de Auschwitz o psiquiatra vienense Viktor Frankl trocou o jaleco pelo número 119 104, mas não abdicou da sua condição mais íntima: a liberdade de escolher o próprio posicionamento face ao sofrimento. Entre 1942 e 1945, passando por Theresienstadt, Auschwitz, Kaufering III e Türkheim, ele transformou o lager nazista num silencioso laboratório onde investigou a última reserva de autonomia humana — aquilo que chamou de vontade de sentido.
2. O laboratório do sofrimento
No cotidiano desumanizador do campo — a dieta de 300 calorias, as botas congeladas, as esteiras de trabalho até a exaustão — Frankl observava dois movimentos antagônicos: a degradação biológica do corpo e a expansão possível do espírito. Percebeu que:
- A perda de sentido antecede a morte física — prisioneiros que fumavam suas últimas cigarettes não aguardavam mais o amanhã; haviam renunciado ao porquê.
- O humor é a respiração da alma — ele e um colega combinaram “inventar uma piada por dia”, criando micro-fendas de transcendência no concreto do horror.
3. A gramática do cuidado: como Frankl ajudava outros prisioneiros
Embora destituído de instrumentos clínicos, Frankl erguia consultórios improvisados nas madrugadas gélidas dos barracões:
| Estratégia de Frankl | Prática no campo | Intenção filosófica |
|---|---|---|
| “Shock Squad” (Esquadrão de Choque) | Grupo de médicos e voluntários que acolhia recém-chegados em Theresienstadt, prevenindo surtos agudos de desespero e suicídio. | Amparar a consciência no primeiro impacto, protegendo a centelha de liberdade interior. |
| Psicoterapia de corredor | Conversas breves durante as marchas ou na fila da sopa; Frankl instigava o detento a lembrar de um filho, de uma obra inacabada ou da fé. | Reativar o logos: o sentido singular que ancora a pessoa no futuro. |
| Educação existencial | Incentivo ao estudo clandestino: aulas de filosofia, troca de poemas, relatos de ciência. | Cultivar “alturas interiores” para contrastar a planície brutal da realidade externa. |
| Exemplo moral | Recusou “ir ao fio” — o suicídio na cerca eletrificada — e convidava outros a fazer o mesmo pacto existencial. | Demonstrar que a escolha final pertence ao sujeito, não ao carrasco. |
4. Logoterapia in statu nascendi
Das observações empíricas emergiu a Logoterapia, terceira escola vienense de psicoterapia, ancorada em três pilares:
- Liberdade da vontade – o ser humano conserva um vão de escolha, ainda que mínimo.
- Vontade de sentido – mais profunda que o prazer (Freud) ou o poder (Adler).
- Sentido da vida – objetivo, situacional e sempre acessível, mesmo à beira do aniquilamento.
Frankl descreve essa descoberta como uma “arqueologia da esperança”: cavar sob os escombros para revelar a pedra fundamental do significado.
5. Entre destino e liberdade: um diálogo com a filosofia
- Estoicismo revisitado — como Epicteto, Frankl distingue entre o que depende de nós (atitude) e o que não depende (condição externa).
- Heidegger às avessas — se o pensador alemão vê o ser-para-a-morte como angústia, Frankl o converte em responsabilidade: a finitude exige que preenchamos o momento com sentido.
- Agostinho e Kierkegaard — a interioridade, para Frankl, é lugar de decisão e testemunho, ecoando a noção de consciência como santuário inviolável.
6. Lições perenes para o século XXI
- Sofrimento não impede florescimento: ele pode ser transformado em tarefa — uma tarefa irrenunciável, porque única.
- Cuidado é ação política: mesmo sem poder institucional, Frankl criou micro-estruturas de saúde mental; cada gesto de escuta pode ser resistência.
- Sentido é relacional: costuma emergir quando o “eu” se volta a um “tu” (pessoa), a um “quê” (obra) ou a um “porquê” (valor).
Conclusão
Viktor Frankl saiu dos campos sem família, sem manuscritos e com 38 kg. Trouxe, porém, a prova viva de que “a última das liberdades humanas” subsiste para além de toda despossessão. Na era do excesso e do vazio, sua voz recorda: **não escolhemos sempre o cenário, mas elegemos a postura — e nela reside o poder de reencantar a existência.

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