Blog do Fabio Jr

O blog que fala o que quer, porque nunca tem culpa de nada.

Pesquise no Blogue:

Pesquisar este blog

sábado, 21 de dezembro de 2024

As diferenças entre o Pinocchio da Disney (1940) e o Pinocchio original de Carlo Collodi

(“Le Avventure di Pinocchio”, 1883) refletem não apenas transformações narrativas e estilísticas, mas também mudanças de perspectiva cultural, moral e filosófica. Enquanto Collodi escreveu seu conto como uma sátira social e uma narrativa moralizante inserida no contexto da unificação italiana, a adaptação da Disney suaviza a complexidade do texto original para atender às demandas de um público internacional, sobretudo infantil, no contexto de uma narrativa hollywoodiana.


1. O Pinocchio de Collodi: uma obra de crítica e ambivalência


O livro de Collodi é profundamente enraizado na Itália do século XIX, um período de intensa transformação social e política. A história original apresenta Pinocchio como um símbolo da humanidade imperfeita, cheio de falhas, mas com potencial para redenção. Collodi usa o personagem para explorar temas como educação, obediência, responsabilidade e luta de classes, frequentemente apresentando a realidade de forma crua e, muitas vezes, punitiva.

 • Caráter de Pinocchio: No texto de Collodi, Pinocchio é impulsivo, desobediente e frequentemente ingrato. Ele simboliza a condição humana em um estado bruto: suas escolhas egoístas frequentemente o levam a consequências trágicas. Por exemplo, ao ignorar os conselhos do Grilo Falante (um personagem secundário que ele mata com uma pedra), Pinocchio sofre punições severas, como ser enforcado por ladrões ou transformado em um burro. Ele é, portanto, um personagem em constante aprendizado, mas suas lições vêm através do sofrimento.

 • Tom da narrativa: A obra original é marcada por um tom sombrio e moralizante, refletindo uma pedagogia severa e realista. As punições enfrentadas por Pinocchio servem como advertência para os leitores, especialmente as crianças, sobre os perigos da desobediência, preguiça e hedonismo. Não há espaço para sentimentalismo: as lições são duras, e o mundo apresentado é implacável.

 • Crítica social: Collodi insere críticas sociais agudas na obra, expondo a pobreza, a exploração laboral e as dificuldades enfrentadas pelas classes populares na Itália pós-unificação. O “Campo dos Milagres”, onde Pinocchio planta suas moedas na esperança de riqueza instantânea, é uma alegoria clara da ganância e da ilusão promovida por charlatões e exploradores.


2. O Pinocchio da Disney: um herói mais palatável


A versão da Disney transforma a história de Collodi em uma narrativa mais otimista, sentimental e simplificada, voltada para um público globalizado e predominantemente infantil. O Pinocchio de Disney não é apenas uma adaptação, mas uma reinvenção ideológica.

 • Caráter de Pinocchio: Na versão de Disney, Pinocchio é retratado como ingênuo e bem-intencionado, mas facilmente influenciável. Ele é menos um símbolo de transgressão e mais uma figura de vulnerabilidade. A essência do personagem é de pureza, e sua jornada trata mais de recuperar sua inocência perdida do que de enfrentar suas falhas morais. Essa abordagem torna-o mais simpático ao público infantil, que pode facilmente se identificar com sua ingenuidade.

 • Redução do tom sombrio: A Disney atenua significativamente os elementos sombrios da narrativa de Collodi. O filme substitui as cenas de violência explícita e as consequências severas por soluções mais leves e emocionais. Por exemplo, em vez de ser enforcado por ladrões, Pinocchio enfrenta aventuras perigosas como ser capturado por Stromboli ou engolido por uma baleia, mas sempre com a certeza implícita de um final feliz. A transformação em burro, embora ainda presente, é menos perturbadora e temporária.

 • Adição do otimismo americano: O filme reflete os valores do otimismo americano do início do século XX, promovendo a ideia de que bondade, trabalho árduo e coragem levam à realização dos sonhos. A canção “When You Wish Upon a Star” encapsula essa visão idealista e se tornou um dos pilares filosóficos da Disney.

 • Simplificação moral: Enquanto Collodi apresenta a moral como uma questão de aprendizado doloroso e gradual, a Disney a simplifica para uma dicotomia clara entre certo e errado. A presença da Fada Azul, mais maternal e compassiva, reforça a ideia de que Pinocchio merece redenção simplesmente por sua boa natureza.


3. Diferenças temáticas e culturais


A divergência central entre as duas obras reside em suas abordagens temáticas e culturais. A Disney, ao recontar a história, reconfigura os valores e mensagens para refletir um contexto diferente:

 • Moralidade individual versus coletiva: O Pinocchio de Collodi reflete uma moralidade baseada na coletividade e na obediência às normas sociais e familiares. O protagonista deve aprender a ser útil e responsável para se encaixar na sociedade. Já na Disney, a narrativa é mais individualista, centrada na realização pessoal e no crescimento interior, ecoando valores típicos do sonho americano.

 • Educação pelo sofrimento versus educação pela inspiração: Em Collodi, o aprendizado de Pinocchio ocorre pela dor e pela punição. Ele sofre para compreender as consequências de suas ações. Na Disney, Pinocchio é guiado por figuras benevolentes, como o Grilo Falante e a Fada Azul, que acreditam em sua bondade intrínseca e o ajudam a encontrar o caminho certo.

 • Cosmologia do bem e do mal: Enquanto Collodi apresenta o mal como uma força intrínseca ao mundo, que muitas vezes seduz e pune sem redenção, a Disney suaviza essas ideias. O mal é representado como algo externo que pode ser vencido pela virtude. Mesmo personagens antagonistas, como Stromboli e Honest John, são apresentados de forma mais caricatural e menos ameaçadora.


4. Conclusão


As diferenças entre o Pinocchio de Carlo Collodi e o da Disney não se limitam a mudanças narrativas; elas refletem uma transformação ideológica e cultural. A obra de Collodi, com seu tom sombrio, moralidade severa e crítica social, é um produto de sua época e contexto, profundamente enraizada nos desafios da Itália pós-unificação. Por outro lado, a adaptação da Disney transforma a história em um conto de otimismo e redenção, adequado à sensibilidade de um público global e às necessidades comerciais do cinema de animação.


Enquanto Collodi utiliza Pinocchio como um espelho da condição humana, confrontando seus leitores com as falhas e as dificuldades da vida, a Disney apresenta uma versão que celebra a capacidade do indivíduo de superar desafios e realizar seus sonhos, refletindo os valores da modernidade e do cinema popular. As duas versões coexistem como representações de duas épocas, culturas e filosofias distintas, enriquecendo a leitura e a compreensão da história.


Oliver Harden




Nenhum comentário:

Postar um comentário